domingo, 2 de setembro de 2012

Psicologia e Cinema

Por Vanessa Coutinho

   "A Dançarina e o Ladrão", ("El baile de la Victória" - Fernando Trueba, 2009), é um filme muito interessante. Gostaria de fazer algumas pontuações a seu respeito. Em primeiro lugar, me parece que o título em português perde de dez a zero para o original. Se tivesse sido simplesmente traduzido, teríamos algo como "A Dança da Victória", muito mais coerente e fiel ao que se vê. Mas, isso é um detalhe...
   O filme tem seu centro no encontro de três personagens: Nicolás Vergara Grey (Ricardo Darín), Angel Santiago (Abel Ayala) e Victória (Miranda Loyola), por sinal, três atuações brilhantes.
   Vergara Grey é um famoso arrombador de cofres que sai da prisão beneficiado pela anistia no Chile, e, ao sair, descobre que seu cúmplice, a quem protegeu com o silêncio, não soube aplicar o dinheiro dos assaltos, e agora não há mais o que dividir. Descobre também que sua esposa Teresa (Ariadna Gil), por quem se manteve fielmente apaixonado, reconstruiu a vida ao lado de outro homem. Ou seja, sua saída leva a um encontro com o vazio de todos os seus projetos. 
   Angel Santiago, também anistiado, é um jovem que foi detido por ter saído para um passeio com um cavalo que não lhe pertencia. Por esse delito tão pueril, passa alguns anos na cadeia e sofre abuso sexual, o que, naturalmente, gera situações que marcarão profundamente seu destino. Angel conhece Victória, a dançarina do título, nas proximidades de um cinema pornô. Ela é uma órfã do regime Pinochet, que presenciou o assassinato de seus pais e, por causa disso, ficou fortemente traumatizada, tornando-se, inclusive, incapaz de falar, e encontrando na dança seu principal meio de expressão. 
   Embora esse trio seja o pilar de sustentação do filme, temos os outros personagens, com participações menores, mas, nem por isso, menos impactantes. Esse é um dos pontos fortes: mesmo os personagens secundários são bem construídos e interpretados. A professora de dança (Marcia Haydée), que leciona para as meninas pobres e acolhia como aluna a pequena Victória quando ela fugia do abrigo todas as tardes para assistir suas aulas, é um exemplo.
   Parece, em uma leitura mais superficial, que o filme fala a respeito do assalto que Angel planeja realizar ao lado de Vergara Grey, de uma fortuna escondida em um gabinete, por trás de uma enorme foto de Pinochet. Mas o simbolismo e os aspectos psicológicos são, a meu ver, o grande trunfo da obra.
   Há cenas belíssimas no filme, como as sequências em que Angel se locomove pela capital chilena a cavalo, pelo meio dos carros e pessoas. É poético, e absolutamente cativante.
   Poético, aliás, é um termo que define bem o filme de Trueba. E poesia não se explica. Por isso, recomendo que assistam. E só.
                                    
                                                                


quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Psicologia e Cinema

Por Vanessa Coutinho

   No filme "Um Conto Chinês" ( Sebastián Borensztein - 2011), o argentino Roberto (Ricardo Darín) vive só, cercado por suas excentricidades , por exemplo: pesquisar e colecionar notícias absurdas. Jun (Ignacio Huang) é um chinês que, justamente por ter vivenciado uma das notícias absurdas da coleção de Roberto, sai de seu país e chega a Buenos Aires em busca de um parente.
   Roberto não fala chinês. Jun não fala espanhol. Como se dá o encontro entre dois homens, aparentemente tão diferentes? Como encontros podem produzir mudanças, pequenas ou grandes, que alteram o olhar das pessoas diante da vida?
   Atenção para a cena em que, sem querer, Jun quebra a cristaleira em que Roberto guarda os bibelôs com os quais presenteia a mãe morta. Tem certa semelhança simbólica com a cena do filme "Chocolate" (Lasse Hallstron - 2001), em que a urna com as cinzas da mãe de Vianne Rocher (Juliette Binoche) também é quebrada. Por vezes nos libertamos de nossos fantasmas por iniciativa própria. Em outras, é preciso que nos atirem para fora das grades aos empurrões...
   Por essa cena e por outras, vale a pena ver.
 


sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Minha secretária está lá em cima...

Por Vanessa Coutinho

   Em certa ocasião eu fiz análise com um terapeuta que usava a seguinte frase: "Minha secretária fica lá em cima". Eu entendia perfeitamente que o que ele queria dizer era que o mundo espiritual, o Divino, o Sagrado, o mágico, enfim, cuidavam para que o seu dia de trabalho transcorresse da melhor forma. Segundo ele, se por acaso ia trabalhar sentindo-se mal, era certo que alguns analisandos ligavam para desmarcar, ou faltavam, dando a ele a oportunidade necessária para se recuperar. 
   Lembrei dessa história porque esta semana veio me procurar uma mulher para propor determinada sociedade. Ela havia sido indicada por alguém que faz terapia comigo, e também já ouvira falar sobre meu trabalho de arteterapia com crianças por uma amiga dela, que pensava em trazer o filho para ser atendido por mim.
   Pois bem, essa mulher chegou atrasadíssima. Apesar disso, esforcei-me para ser acolhedora e recebê-la bem, e mesmo sabendo que atrapalharia todos os outros horários, não quis desmarcar nosso encontro. Ela falou sem parar por mais de uma hora, cheia de todas as certezas do mundo, não só referentes à profissão dela como também (e principalmente) à minha.
   Mesmo tendo sido ela a me procurar (e não o contrário), apresentou-se fortemente opositora diante das poucas palavras que me deixou pronunciar, e mostrou-se preocupada em saber minha religião, resposta que não dei, embora pudesse até ter dado, mas julguei que "...esse papo teu tá qualquer coisa, você já tá prá lá de Marrakeshi...".
   Questionou se eu era mística, ou esotérica, porque, segundo ela e seu saber total, os junguianos são místicos e esotéricos. Além disso, possuo alguns enfeites com características orientais em meu consultório (um espelho com moldura de elefantes, por exemplo).
   Mal sabe ela que, por ironia, temos a mesma religião (ela, é claro, encheu a boca para falar de sua fé). Quando vi em seus olhos brilharem pequenas fogueiras da Inquisição, voltadas para a bruxa (eu) sentada à sua frente, compreendi que o projeto não rolaria.




   A princípio fiquei frustrada, pois seria algo ligado à minha pesquisa de arteterapia com crianças. Depois, li no facebook o post de um amigo, com uma frase do Caio Fernando Abreu, que dizia: "Se alguém se afastou de você, foi porque Deus atendeu a seu pedido de livrar-te do mal".
   E, de repente, tudo fez enorme sentido. Amém.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Eu li...

... no Jornal O Dia de hoje, na coluna do Fernando Molica:
"Ao fim de cada Olimpíada, após a contagem de nossas poucas medalhas, ouvimos os mesmos lamentos e promessas. Agora, o coro é maior, relacionado ao aumento de investimentos públicos nos esportes e ao fato de que os Jogos de 2016 serão no Rio.(...)
   De um modo geral, países cujos atletas conquistam mais medalhas são aqueles que proporcionam melhor qualidade de vida aos seus cidadãos. (...) têm como base uma estrutura pública de acesso à educação e ao esporte. A formação de campeões é consequência do bem-estar da população. (...)
   No Brasil, aplicações pesadas no esporte seguem a lógiaca de dar muito dinheiro para quem já é rico e de despachar migalhas para os pobres. (...) Isenções fiscais bancam torneios de golfe e pólo, campeonatos de rugby, olimpíada em colégio de elite, jogo de fim de ano de ex-atletas de futebol e até a formação, como piloto, nos Estados Unidos, de um neto do Emerson Fittipaldi. (...) Como diriam os Titãs, a gente não quer só medalha."
   E, como diria Cazuza: Brasil, mostra a tua cara!

Orgulho de ser educadora

Por Vanessa Coutinho

   O Ciep Glauber Rocha, na Pavuna, região ainda sob o domínio do tráfico de entorpecentes, cercada de carências sociais e violência, obteve média 8,5 no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Ficou em primeiro lugar, à frente das outras 1749 escolas públicas do Rio de Janeiro.
   Em uma comparação nacional, apenas duas escolas (uma em Itaú de Minas e outra em Foz do Iguaçu) ficaram à frente do Ciep, ambas com 8,6.
   Parabéns aos alunos e educadores do Ciep Glauber Rocha, que mostraram que é possível privilegiar a Educação de qualidade e fazer muito com muito pouco...



terça-feira, 14 de agosto de 2012

Xangô e os camundongos

Extraído do livro "Erinlé, o caçador e outros contos africanos" de Adilson Martins (texto) e Luciana Justiniani Hees (ilustrações) - Ed. Pallas

   Xangô, rei dos iorubás, foi capturado por seus inimigos, que o prenderam em um casebre sem nenhuma abertura, para que ali morresse de fome e sede.
   Sentado no chão, o rei observou a presença de um camundongo e pensou:
   - Pegando este animal, poderei comê-lo e, dessa maneira, adiar a minha morte.
   Com um movimento rápido, conseguiu pegar o animalzinho com suas mãos.
   O rei já se preparava para matar o pequenino, quando refletiu:
   - Para que sacrificar este bichinho inocente se, de qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, vou morrer de fome?
   E assim pensando, libertou o assustado camundongo que, correndo, desapareceu em um pequeno buraco no canto da parede.
   Momentos depois, o rato estava de volta e, para surpresa do rei, falou as seguintes palavras:
   - Nobre rei de bondoso coração! Meu nome é Larinká e eu lhe presto homenagem por sua bondade e por seu bom caráter! Por ter poupado minha vida, eu, um pobre rato, vou ajudar a conservar a sua!
   Mal acabara de falar essas palavras e, pelo mesmo buraco, começaram a entrar muitos camundongos, cada um trazendo na boca uma pequena fruta, um pedaço de pão, um grão ou qualquer coisa que servisse para matar a fome do prisioneiro.
   A cena se repetiu durante muitos dias. Muitos alimentos e pedaços de algodão encharcados em água, trazidos pelos ratos, mantiveram vivo o bondoso rei.
   Depois de muitos dias, certos de que o prisioneiro já estava morto de fome e sede, seus inimigos abriram a porta. Qual não foi o seu espanto ao encontrarem Xangô vivo e forte, descansando no chão de terra batida.
   - Este homem possui uma grande magia - disse o chefe deles. - Como alguém pode sobreviver tanto tempo sem água e comida?
   - Não podemos matar um homem que tem tantos poderes! - disse um outro.
   - Devemos soltá-lo imediatamente, antes que use seus poderes contra nós... - disse um terceiro.
   Imediatamente abriram por completo a porta, para que o rei saísse em liberdade, e ofereceram-lhe uma canoa para que pudesse seguir rumo ao seu país, que ficava rio abaixo.
   Foi assim que Xangô, rei de Oió, ficou em débito com Larinká, o pequeno camundongo.


                                                  

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Jorge Amado...

...hoje completaria 100 anos. Lembro perfeitamente de que, quando ele morreu, senti como se tivesse perdido um amigo. Este sentimento vinha de minha intimidade com seus livros, alguns dos quais li, reli e reli, como "Capitães da Areia", "Tenda dos Milagres", "Mar Morto" e tantos outros.
É impressionante como nossa obra nos transporta para muito além de onde nós mesmos chegamos a ir.
Salve Jorge!

Direto do Facebook ("Mundo Arquetípico")

Simples e bonitinho...

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sobre o parto domiciliar

Vanessa Coutinho

   Tenho duas filhas. Ambas nasceram em maternidades. Nunca pensei em ter um parto domiciliar, mas, sinceramente, não vejo nenhum absurdo nisso. Da mesma forma que eu, como gestante, optei por ir ao hospital, sou favorável àquelas que optem por ter seus filhos em casa.
   No Rio de Janeiro, os médicos estão proibidos de atuar em partos domiciliares, a não ser em casos emergenciais. Estas medidas restringem principalmente o trabalho de doulas (profissionais que acompanham o parto, dando apoio à mulher), parteiras e enfermeiras obstétricas, mesmo que graduadas, especializadas e até doutoras em parto domiciliar.
   Esta modalidade de parto é aceita nos quatro cantos do mundo, inclusive nos países ditos desenvolvidos. Mas no Rio de Janeiro está proibido. A mulher que quiser e tiver condições de saúde para isso, vai precisar lutar na justiça por seu direito. "Aumenta as chances de complicação e morte", dizem os interessados na proibição. E eu não posso deixar de lembrar das recentes mortes em série de bebês devido às precárias condições (inclusive de higiene) em maternidades públicas do país, muitas ocorridas no queridísimo estado do Rio de Janeiro.
   O povo deve ter direito à informação, e creio que as estatísticas, nesse caso, poderiam ser mostradas.
   Sei não... Sinto cheiro de corporativismo...
   Espero que enfermeiras obstétricas, parteiras e doulas não se intimidem. Chega de engolir em seco diante de tanta arbitrariedade.
   Espero também que estes que lutam para que mulheres e bebês não morram devido aos partos domiciliares, lutem com igual afinco contra as mortes no interior de maternidades públicas imundas e sucateadas.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

"Foi por medo de avião..."

Vanessa Coutinho

   Um grande amigo, colega de ofício, tem uma séria dificuldade quando se trata de viajar de avião. Já chegou a declinar de um convite para ir à Europa, pois era incapaz de se imaginar sobrevoando o oceano em um trajeto de cerca de dez horas.
   Por conta dessa, digamos, dificuldade, nunca aceitou tratar pacientes que sofressem de medo de voar, e costumava encaminhá-los a outros profissionais.
   Em certa ocasião, uma paciente de quem tratava já há tempo revelou algo até então não dito: tinha medo de avião, mesmo em viagens curtas, e costumava sentir-se muito mal e angustiada quando precisava voar. Meu amigo ficou incomodado, buscou supervisão, intensificou sua análise pessoal e, por fim, decidiu que continuaria o processo com a paciente que, até o momento, ia muito bem.

                                                      
 
    Tempos depois, ele me confidenciou que sua paciente havia melhorado sensivelmente no que se referia ao citado medo. "E você?" - perguntei. "Eu acabei de recusar um convite para ir à Argentina... Não dei conta...".
   Em silêncio, sorrimos um para o outro. Eu pensava nos encantos e mistérios desta profissão. Meu amigo foi capaz e competente para minimizar a dificuldade de alguém, embora não tenha conseguido vencer a sua. Lembrei da frase de Jung: "um analista não pode levar alguém além de onde foi em sua própria análise". Outros famosos psicólogos afirmaram coisas semelhantes. Mas o fato é que o medo de voar de meu amigo certamente é diferente do medo de voar de sua paciente. Não existem sintomas iguais em sua essência.
   E eu não conseguia deixar de pensar nos encantos e mistérios desta profissão...

domingo, 22 de julho de 2012

Buda

" Se a sua compaixão não inclui você mesmo, ela é incompleta".

                                                     

Carl Gustav Jung

"Conhecer a sua própria escuridão é o melhor método para lidar com a escuridão dos outros".

                                  

sábado, 21 de julho de 2012

A doença do preconceito

Vanessa Coutinho

   Estava assistindo, junto com minhas filhas, a uma reportagem de TV que contava a história de uma mulher que tinha quatro filhos, e estava grávida do quinto. A repórter afirmava que a Sra. A. criava suas crianças com enorme dificuldade. Sem perceber, falei: "ora, mas se cria quatro com dificuldade, por que engravidou do quinto?".
   Ao final da matéria, a repórter nos revela que, um mês após aquela gravação, A. entrou, prematuramente em trabalho de parto. Foi rejeitada em duas maternidades por falta de estrutura, médico, leito, ou fosse lá o absurdo que fosse. Na terceira, deu à luz sua filhinha que, por ser prematura, precisava de cuidados especiais, que a clínica não pôde oferecer. Resumindo, a criança faleceu.
   Enquanto eu, consternada, refletia sobre a situação da saúde pública em nosso país, Luísa, de seis anos, falou: "ainda bem que ela agora só vai ficar com quatro filhos..."
   Percebi que ela quis apenas fazer eco às minhas palavras, ao meu comentário que, no fundo, havia sido tristemente preconceituoso. O que me permite afirmar que alguém deva ter um ou dois ou cinco filhos? Claro que sou favorável ao planejamento familiar, mas, quem sou eu para julgar se A. viveria melhor ou pior com quatro filhos ao invés de cinco?
   Imediatamente comecei a conversar com Luísa, explicando que as coisas não eram tão simples quanto mamãe havia dito, e que era muito ruim que aquele bebê não tivesse tido a chance de sobreviver. Percebi o quanto nós, pais, temos a obrigação de nos responsabilizar por passar preceitos éticos aos pequenos. E o quanto nossos atos, por mais sutis que sejam, são sempre tijolos fundamentais na formação de seu caráter.

Quando o pouco é muito

Vanessa Coutinho

   Amanda tem dez anos. Apresenta um quadro psiquiátrico que dificulta muito a permanência prolongada no interior do consultório. Em geral eu consigo assegurá-la, e o atendimento se dá sem maiores dificuldades, embora, de vez em quando, ela manifeste seu desejo de sair.
   Na última sessão foi impossível entrar. Como meu consultório fica em uma instituição com grande área externa, vegetação, laguinho com peixes e outros atrativos, além de oferecer segurança, resolvi apostar em um atendimento do lado de fora da sala.
   Andamos muito, para todos os lados. Falamos muito pouco. Mas, onde quer que ela fosse, lá estava eu ao seu lado.
   Em determinado momento, sentamos em frente a uma parede feita de pedras, onde se movimentava uma família de pequenos lagartinhos. Amanda ficou atenta, e começou a nomear: "aquele é grande e gordo. Deve ser o pai. Aquela outra deve ser a mãe..." 
   Até que falou:
   - Meu pai não gosta de mim.
   - O que você disse?
   - Nada.
   - Você disse que acredita que seu pai não goste de você? Por quê?
   - Porque ele não tem orgulho de mim.

                                                          


   O pai de Amanda é professor, e a queixa principal da família se refere ao fato de que está ficando difícil para ela acompanhar a turma do colégio (regular), e, possivelmente, será necessária uma reavaliação de sua situação escolar.
   Tentei continuar o diálogo, mas Amanda se fechou. Não insisti. Por vezes é preciso dar valor ao "pouco que é muito" na situação terapêutica. Tive também o cuidado de não reafirmar que o pai não gostava dela, e sim dizer que ela acreditava nisso. Era uma percepção subjetiva, e como tal precisava ser ouvida, entendida e trabalhada. E o silêncio é uma forma de trabalho.
   E assim, juntas e em silêncio, voltamos a observar a família de lagartos.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Devolvendo o Presente

(extraído do livro "As 14 Pérolas Budistas" de Ilan Brenman e Ionit Zilberman, ed. Brinque-Book)

   Buda estava conversando com seus alunos embaixo de uma linda árvore quando, de repente, apareceu um jovem bêbado desafiando o mestre para uma briga. Para surpresa geral, o mestre aceitou.
   Abriu-se uma roda, Buda de um lado, o jovem do outro. Antes de partir para cima do mestre, o jovem bêbado começou a jogar terra na cara de Buda. Este não se mexeu. Então, o jovem começou a cuspir na direção do rosto de Buda, e novamente este nada fez. Restava usar as palavras: o jovem xingou Buda de coisas horrorosas, e este também nada fez.
   Por uma hora inteira tudo se repetiu: terra no rosto, cusparadas e xingamentos. O jovem, não suportando a passividade do mestre, foi embora gritando, morrendo de ódio.
   Os alunos, espantados, aproximaram-se de Buda e disseram:
   - Quanta humilhação, mestre! Ele lhe jogou terra no rosto, cuspiu, xingou, e o senhor não fez nada!
   Buda se limpou e disse com serenidade:
   - Alunos, quando alguém vai à sua casa levando um presente e vocês não aceitam, com quem fica o presente?
   - Com quem o levou - disse um dos alunos.
  - Então, ouçam e aprendam: quando alguém joga em vocês ódio, raiva e veneno e vocês não aceitam nada disso, com quem ficam esses sentimentos?
   Aquelas palavras calaram fundo na alma dos alunos.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Renato

Vanessa Coutinho

   Não são poucas as vezes em que agradeço a Deus por me ter feito trilhar o caminho que leva ao ofício de terapeuta. A oportunidade privilegiada de ouvir histórias carregadas de afeto, favorece a que, a cada dia, surja uma nova chance de, como me disse várias vezes o terapeuta freudiano Flavio Vieira, aumentar o "ângulo de visão" diante da grandeza da vida.
   Dia desses, ouvi um relato, ao mesmo tempo comovente e forte, que ficou longos períodos a me visitar e provocar.
   Um menino de doze anos estava com uma doença com grandes chances de levar à morte. Foi-lhe proposto que tentasse um procedimento cirúrgico, que o deixaria desfigurado. Sem o procedimento, a chance de sobreviver seria zero. Com o procedimento, seria mínima. O menino, diante das assistentes sociais disse que não faria a cirurgia. Se era para morrer, morreria com a aparência que tinha naquele momento. Ao serem informados da decisão da criança, os médicos pensaram em buscar na justiça o direito de operá-lo contra a sua vontade. A equipe de "não-médicos", mais acostumada ao idioma do humano do que às quetões do corpo físico, conseguiu aplacar o "furor curador", e, enfim, foi resolvido que o menino, a quem chamarei Renato, não seria submetido ao processo desfigurante, e receberia os cuidados paliativos, que o ajudariam a viver seus últimos meses com o máximo de conforto.
   Escolhi chamá-lo de Renato porque ele renasceu, é um re-nato. Do alto da sabedoria de seus doze anos, esta criança sabia que, na verdade mais crua, ele estava condenado à morte, de qualquer forma. Também fez renascer, possivelmente, nos médicos, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, um respeito e uma reverência à sabedoria interna que há dentro de cada um de nós, o Self. Em seu processo de individuação, que Renato teve apenas doze anos para trilhar, talvez tenha chegado mais longe do que muitos que vivem até os cem anos.
   A ele, minha admiração por sua força e coragem, de viver seu mito pessoal com dignidade e serenidade. Se trilhar o processo de individuação nos leva a um encontro com a saúde integral no fim do caminho, Renato já completou a jornada.
   E à vida, pelo imponderável e incontrolável, por sua força e beleza, mais uma vez, meus sinceros agradecimentos.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Cabeça de Criança

Vanessa Coutinho

   Minha filha Sofia tem 2 anos e 7 meses. Está na fase de "A Bela e a Fera", o que quer dizer que assiste ao DVD inúmeras vezes por dia, chegando a decorar as canções e até mesmo algumas falas.
   Em um determinado dia, me disse que ela era a Bela. Até aí, tudo bem. Mas, na cena em que Bela, ao se ver sozinha no castelo da Fera, se joga sobre uma cama soluçando, Sofia virou para mim com os olhos cheios de lágrimas:
   - Mamãe, eu chorei! Eu chorei!
   Na hora, meu impulso foi dizer: "o que é isso minha filha!? Não é você, é só um desenho na televisão..."
   Percebi que dizer isso seria falar com o adulto que Sofia ainda não tem dentro de si. Então, busquei ajuda da criança que sobrevive em mim, estendi os braços para aquela pequena criatura magoada e disse apenas:
   - Está tudo bem, meu amor. Mamãe está aqui com você... Eu vou ficar aqui e te ajudar...
   Abraçada em mim, a cabeça em meu peito, minha filha foi se tranquilizando. Dentro de seu mundo de fantasia, eu me permiti entrar e dialogar com ela em um idioma próprio.
   O que posso dizer é que esta emoção asustada diante da cena não voltou a se repetir.
   Foi de extrema importância para mim vivenciar esta experiência, pois me ajudou a entender um pouco mais como podemos ajudar as crianças pequenas que se encontram em processo terapêutico.
   Somos constantemente convidados a adentrar seu mundo imaginário e precisamos aceitar o convite, pois esta pode ser uma forma privilegiada de sanar suas feridas e evitar futuros sofrimentos.
 
                                                          
 

terça-feira, 1 de maio de 2012

sexta-feira, 27 de abril de 2012

De cara limpa


   Uma vez fui com Luíz Horácio, pai da minha filha Luísa, a uma festa de fim de ano na casa do jornalista e escritor Fausto Wolff.
   Já teria sido um dia memorável pelo nada simples fato de estar no mesmo evento que Aldir Blanc, por quem nutro grande admiração. Mas lembro de um diálogo que tive com Fausto, e que até hoje costuma me vir à mente. Ele perguntou:
   - Quer cerveja?
   - Não, obrigada.
   - Vodca?
   -Não.
   -Vinho, whisky, champagne? O que você bebe?
   - Obrigada, eu não bebo...
   Ele olhou para mim muito sério, para depois questionar, com sua voz inconfundível:
   - É cocaína que você usa?
   - Não. Não uso cocaína.
   - Como você consegue viver de cara limpa?
   Tive vontade de responder que minha cara não era tão limpa, porque de vez em quando eu mandava um tarja preta sublingual (fraquinho, é verdade...) mas, de qualquer forma, refleti sobre o que ele dissera. Vivemos em uma época em que não podemos estar tristes, ansiosos, angustiados, assustados, que vem logo um diagnóstico de saúde mental para nos carimbar. Não podemos estar sem vontade de fazer sexo, com muita vontade de comer chocolate e não sair da cama, nem fazer o sinal da cruz ao entrar num avião.
   Temos que ser lindos, jovens, sensuais e radiantes. Destemidos, descolados, ricos e bronzeados (não exageradamente, por causa do câncer de pele). Não comer carboidratos, nem gordura, malhar, ser bons profissionais (famosos de preferência), filhos exemplares e excelentes pais. O problema é que não dá para ser isso tudo e ser humano ao mesmo tempo. Aí, só com cerveja, vinho e vodca. Ou um  tarjinha preta, usado com moderação...

domingo, 18 de março de 2012

Psicologia e Cinema

   Toda arte é, por excelência, uma forma de expressar afetos. Somos tomados por aspectos subjetivos ao produzir uma obra de arte e também ao contemplá-la.
   O cinema, como uma forma de arte bastante complexa, presta-se a esse fim, o de nos provocar em nossos aspectos mais íntimos.
   Filmes como os que comentei aqui: "Precisamos falar sobre o Kevin", "Minhas tardes com Margheritte", "Cisne Negro" e outros, infinitas possibilidades sobre as quais não comentei ("Melancolia", "A pele em que habito" , e tantos outros), são cheios de aspectos subjetivos, afetivos, e nos fazem rever e pensar sobre sentimentos que compõem nossa vida, nossas relações.
  

segunda-feira, 12 de março de 2012

Psicologia e Cinema

Por Vanessa Coutinho

   O filme "Precisamos falar sobre o Kevin", de Lynne Ramsay, apresenta diversas situações impactantes que podem provocar discussões muito interessantes a respeito da tão falada relação mãe-filho.
   Eva (Tilda Swinton) é uma mulher comum, nem boa nem má, nem santa nem demoníaca. É uma mulher que, no início do filme está completamente sozinha, sendo hostilizada pela comunidade em que vive.
   Aos poucos, através de suas lembranças, descobrimos que ela teve um filho, Kevin (Ezra Miller), um filho que não foi desejado, como tantos outros filhos não desejados que milhares de mulheres têm todos os dias. Sua relação com esse filho é difícil desde o início, apesar de, volto a dizer, ela não ser uma mãe má, e, por vezes, mesmo que de forma desajeitada, tentar conquistar um pouco o coração dessa criança tão peculiar. Há uma cena interessante em que Eva mostra felicidade por conseguir a atenção do menino ao contar para ele a história de Robin Hood (Um ponto fundamental na trama que se sucederá).
   Kevin, aos dezesseis anos, torna-se o autor de uma chacina em sua escola, e Eva parece receber sobre os ombros toda a culpa. Porém, ao receber a notícia da chacina, ela corre até a escola desesperada por pensar que seu filho pudesse estar entre as vítimas.
   Enfim, este é um filme que vale a pena ser visto, por trazer uma discussão a respeito da tão delicada relação mãe e filho. E por mostrar que uma mãe que não é "perfeita, santificada e beatificada", nem por isso é uma pessoa desprovida de humanidade.